Thursday, March 15, 2007

O Pranto de Lúcifer

o meu nome é lúcifer. o portador da chama. o deus babilónico das monções. nasci para que a palavra morresse, para que não mais encantasse. para que servisse apenas para alimentar as árvores e a pele do corpo. o corpo e a cinza. o deus vilipendiado pelo estrume das folhas mortas. acabadas. erguidas ao nível da lava e da pedra.

sou o deus do rochedo e do outono. do inverno que não acaba. do natal sem os presentes, sem o menino jesus, com as meias enforcadas numa moeda já gasta. acabada. sou o devorador das coisas humanas.

se morresse, tu me esperarias e nunca mais acordavas. sei que és criança e que vives no limiar do tempo. uma esfinge como a águia serena de tebas. a cidade do enigma. dos adultérios e dos incestos. o pai e a mãe. o irmão e a irmã. o perfume celebrado na luz dos sentidos. espero pelo orgasmo da noite.

se tu me esperares, promete-me que anoiteces o mundo. e que não tens qualquer esperança. o pranto é a desolação do homem que se rouba. que grita. e que assassina o seu filho dentro da lágrima caída. sou o deus da lágrima e da desolação.

sei que estou prestes a chegar e que morres lentamente. e que esperas pelo fim dos tempos. és santificado. és uma luz no interior da palavra, o deus persegue-te. eu lamento-me pelo teu verbo. e pelo teu rosto. sei que estou prestes a chegar. e que não partes. dormes na mesma cama, com os lençóis no mesmo olho escondido. acaso tens olhos? e boca? e prazer? és um homem santificado e o prazer persegue-te. como uma larva.

a tua noite é a minha noite. e sem o teu corpo, cairei na desolação. faz de conta que sou o anjo e que te amarei em todos os séculos. o tempo todo está para vir, apesar dos meus olhos serem frios e os meus cabelos de ferro. prometo que te amarei e que te empurrarei para o abismo. não há prazer sem queda. orgasmo sem choro. palavra sem silêncio.

já cheguei e ouço a tua voz. ela não existe. é um fogo mais intenso que todas as fontes caiadas que encontrei pelo caminho. todos os caminhos levam aos teus dedos. aos dedos que esfacelam, que assassinam, que roubam a alma. que existem. chego e ouço o teu choro. ele pede por deus. ele pede pelo anjo. pelo devorador das monções e dos deuses pagãos. choras e pedes. escondes-te no armário mais secreto e escreves o teu medo. apesar do sangue que cai. e da comida estragada. e dos assaltos. o deus assalta-te como uma pomba inflamada. leva-te para junto dele. tu vais. não morres.

já cheguei, mas não ouço nada. nem o simples respirar do sexo. tu não podes ter prazer. ou tens. és carne e fogo como todos os homens, mas és mais do que eles. és a humanidade que vive na sua noite. o deus que não acaba. o anjo que não esquece. o santo que faltava nascer. vives da pele e morres na escrita. és o grito asfixiado da humanidade, não tens voz. tens todas as vozes que já existiram.

cai a manhã. não morres. e acabas de chorar. alguém te ergue pelos olhos e diz-te que o tempo vai próximo. nunca cheguei porque o teu corpo é impenetrável. sou o deus das monções e do inverno sem fim. sou lúcifer. o anjo descaído. não sou santificado. como tu. sou o eterno fim. a filosofia. a letra inacabada.

carne viva
um pedaço de pele abandonado pelos abutres
tudo o que não existe
e que, sem cessar,
alimenta toda a humanidade.



Jorge Vicente

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

u diabu!

2:28 PM  

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