Wednesday, February 28, 2007

Faça-se luz para Lúcifer!

"A palavra Lúcifer significa "o portador da luz" ou "o portador do archote" (a palavra tem sua origem no latim, lux ou lucis com o significado de "luz"; ferre com o significado de "carregar"). Ou seja, de acordo com a origem, seu significado é "aquele que carrega a luz". Apesar de Satanás ser originalmente conhecido como Lúcifer, perdeu seu posto ao desejar subir a alturas acima de Deus e de Seu Ungido. Daí a importância de se evocar Apocalipse 22:16 onde Jesus deixa claro que ele é a verdadeira Estrela da Manhã." in Wikipedia
No espaço de um ano, era a segunda vez que Lúcifer era despedido. Alguém na Companhia de Electricidade tinha denunciado as ligações eléctricas clandestinas que Lúcifer fazia para "iluminar" os amigos. Há poucos meses tinha perdido o emprego numa empresa de televisão por cabo por descodificar canais a troco de uns trocos para cervejas. "Esbirros de uma figa!", dizia Lúcifer para com os seus botões, a caminho de casa. Era claro que não tinha feito as melhores opções mas, agora, com 27 anos, parecia-lhe tarde para começar do zero. E começar o quê?
Lúcifer tinha um sonho: viver na luz. Não na Estrada da Luz, nem na Luz do Conhecimento. Na Luz literal. Em cima de um palco. Sentir a luz a ofuscá-lo, a aquecê-lo, a fazê-lo brilhar. Nunca tinha contado a ninguém o seu sonho porque tinha medo que lhe chamassem "maricas". E depois essa coisa de ser artista nunca atraiu as "gajas".
Nesse dia, fez-se luz para Lúcifer. Aproveitou a ida da mãe, costureira de profissão, em peregrinação a Fátima e remexeu na alta-costura da pobre D. Adozinda. Reflectida no espelho, estava agora uma deusa de longas pernas e cintura marcada. Apesar do bustier, da saia travada e dos saltos-agulha, lá por dentro, Lúcifer continuava o mesmo: o mesmo maluco por "gajas", cervejas e um "lampião" ferrenho. Se se cruzasse na rua com aquela mulher do espelho, até era capaz de lhe dizer uma ou outra "graçola".
A cortina abre-se. É a Noite dos Amadores no bar de travestis mais conhecido da cidade. A luz já lá está, quente, à espera para o abraçar. Sem medos, Lúcifer avança para o playback que fará dele o mito vivo do transformismo. No Céu, o seu pai, um "ex-padre" alentejano morto por electrocussão num acidente de trabalho, fica contente pelo filho ter escolhido o caminho da Luz, que é também o da Felicidade.
P.S.: Disparatografia inspirada nas conversas de hoje. Catalogue-se como "Literatura Parva". Dedico ao meistre e aos colegas.

Thursday, February 22, 2007

Estudos do EU


Este é o primeiro texto, filho/fruto dos nossos exercícios conjuntos de palavras...a vocês, meus colegas e professor, o dedico.


Não é que não sinta, nem sequer que desaprove a euforia dos outros, simplesmente estou dormente…
E como um qualquer membro corpóreo que adormece, levo o meu tempo a retomar a sensação de possuir qualquer coisa que me entranhe, uma simples parte integrante de um ego maior, de uma esfera de limites empolados ou austeramente menosprezados pelos que o desconhecem.
Viver e amar, tocam-se por breves e escoados instantes e, como uma criança que brinca numa caixa de areia, vão-se arrastando para buracos desordenados, partes de uma construção prostrada, por um devaneio qualquer.

Não te devo, nem receio, não te soletro porque cosi os meus lábios secos pela paixão fortuita ou condenada pela insanidade…
Nos meus cadernos de palavras vãs, de episódios de uma almejada longa-metragem, empreendo um argumento maior, bem maior que eu e que os passos que consigo dar.
E o filme corre a 8mm, pouco maior que a cadência dos acontecimentos narrados em voz-off…

Caiu e retomo o percurso, ainda que por vezes me deixe estar confortavelmente a admirar os joelhos esfolados e a saborear a aridez da terra…é áspera, tal como a última recordação que tenho de ti…

Tenho o dia todo para me iludir e no entanto, não o faço, porque loucos são os que se alimentam de luzes intermitentes, como os sinais avariados da Avenida.

E escrevendo consigo o que quero e nem tanto o que necessito… e ponho marcha-atrás na minha infindável lista de prioridades….volto a mim e ao meu imenso e aveludado silêncio.

Arranjo e desarrumo, aprumo e desmancho, o tecto e as paredes, os objectos, as vozes e os desacertos…quem merecerá pertencer ao meu mundo de júbilos perenes?

Deveria talvez rodear-me, de previsíveis auto-retratos, pedaços do meu ser desgastado pelo indolente e inesgotável pensamento…
E eis que se rarefaz e perco o fio condutor, da sensação que tentava recuperar…animam-se os vazios emocionais que preencherei em seguida…

Deus e o amor, semânticas rocambolescas, arte sugestionada, páginas de vida, telas pinceladas de afectos, léxicos forjados, gramáticas indefectíveis, terapias milenares, freudianismos incestuosos, filosofias de ponta, quotidiano versus real, ontem antónimo de agora e fragmentos de tudo isso e do “para além”, confundem-se numa vaga e auspiciosa percepção de mim…

Para quem pretenda um breve resumo, um trecho sucinto, um esquiço elucidativo deste tudo que se passeia sem sensatez nas minhas palavras, lamento, mas ainda estou no prefácio de uma intrincada existência.

P.S. Texto também publicado no meu blog http://laranjanacidade.blogspot.com

Tuesday, February 13, 2007

Geometria Sagrada das Palavras



(quadro de Egon Schiele, "Girl", 1918)

o corpo é um todo simbólico
apenas limitado pela ausência
forçada das palavras: o silêncio,

o momento sagrado da unificação
do divino e do humano. se tu
escreveres, apenas saberás que
os cabelos limitam

o prazer e que as palavras ditas
sempre interpretam o nome de Deus,
mesmo que não o saibas e o teu corpo
não to transmita.

a pausa para respirares é uma vírgula
apenas, onde páras o sangue que te
rói a pele. e enches as palavras

de espanto. crias as chagas e inventas
os teus limites.

não existe um altar onde possas demorar
o teu olhar. recria a ábside e a nave
como se fosses sagrado e imperecível.

tu és a tua própria catedral
a pedra
o rio que, lentamente, alimenta
os corpos e os beija quando, nus,

inventam a árvore da vida
no recriar constante do nome
de Deus.

Jorge Vicente




P.S. este post também está publicado no meu blog privado, cujo endereço é http://amoralva.blog-city.com. Agradeço a vossa visita e comentários.