Sunday, October 12, 2008

excerto

"O livro sagrado de que melhor se conhecem as condições em que foi escrito é o Alcorão. As mediações entre a totalidade e o livro eram pelo menos duas: Maomé escutava as palavras de Alá e ditava-aa por sua vez aos seus escribas. Uma vez - contam os biógrafos do Profeta - ao ditar ao escriba Abdullah, Maomé deixou uma frase a meio. O escriba, instintivamente, sugeriu-lhe a conclusão. Distraído, o Profeta aceitou como palavra divina o que dissera Abdullah. Este facto escandalizou o escriba, que abandonou o Profeta e perdeu a fé.
Estava errado. A organização da frase, em última análise, era responsabilidade dele; era ele que devia ajustar contas com a coerência interna da língua escrita, com a gramática e a sintaxe, para captar a fluidez de um pensamento que se expande para fora de todas as línguas antes de se tornar palavra, de uma palavra particularmente fluida como é de um Profeta. A colaboração do escriba era necessária a Alá, desde que decidira exprimir-se num texto escrito. Maomé sabia-o e dava ao escriba o privilégio de concluir as frases; mas Abdullah não tinha consciência dos poderes que estava investido. Perdeu a fé em Alá porque lhe faltava a fé na escrita, e em si próprio como operador de escrita.
(...)
É na página, e não antes, que a palavra mesmo a do raptus profético, se torna definitiva, ou seja, escritura. É só através da limitação do nosso acto de escrever que a imensidão do não-escrito se torna legível, isto é, através das incertezas da ortografia, dos erros, dos lapsos, dos saltos incontrolados da palavra e da pena.








"Se numa noite de Inverno um viajante", de Italo Calvino (p.155),
(excerto escolhido por Vanessa Bernardo)